O Espelho Atormentado - Russel Edson


Russell Edson (1935) é considerado o mais importante autor americano de poesia em prosa. Para muitos o termo poesia em prosa é algo ambíguo. Há autores que o rejeitam, pois consideram que aquilo que escrevem é poesia, independentemente de ser em verso ou não. Um outro problema com o termo poesia em prosa é o facto de, algumas vezes, este poder ser confundido com micro-ficção, apesar de se partir do principio que narrar uma história não é algo exclusivo do género ficcional, principalmente com a actual questão dos géneros literários, onde a hibridismo é ponto assente e aceite.

Em O Espelho Atormentado Russell Edson leva até ao limite a fronteira entre poesia em prosa e micro-ficção. Qualquer leitor desprevenido, isto é, que não conheça os meandros por onde a criação e a liberdade literária se movem, considerará, sem qualquer espécie de dúvida, que O Espelho Atormentado é um livro de pequenos contos. E todos os ingredientes estão lá: cenário, personagens, conflitos e uma conclusão. O leitor não encontrará, nestes poemas em prosa, o mesmo que encontra nos poemas em prosa de Saint-John Perse.

Russell Edson, como poucos autores, provoca no leitor a sensação de viagem numa montanha russa, pois partindo muitas vezes duma situação banal, consegue a surpresa: «Os elefantes gostam de roupa interior em serapilheira», «Uma velha deu à luz uma ninhada de ratos.», «Andavam a transformar animais em pessoas», «Havia um homem que queria comprar um velhote numa loja de antiguidades», «Um piano havia feito uma bosta monumental». Só para dar alguns exemplos. Um dos principais objectivos de Russell Edson é provocar o riso e o desconforto. Leia-se:
Segredos Genitais

Perguntaram a uma mulher se o seu bebé era menino ou
menina.
Não sei, nunca espreitei. Não me parece correcto invadir
assim a privacidade das fraldas, esse lugar de segredos
genitais.
Mas não gostava de saber se é menino ou menina?
Se lhe crescerem bigodes chamo-lhe Henry. Se não
chamo-lhe Henriquetta. Disse a mulher.
E supondo que lhe crescem penas?
Nesse caso forro-lhe a gaiola com o jornal de ontem e
dou-lhe um biscoito, disse a mulher. Mas se lhe crescerem
bigodes chamo-lhe Henry. Se não crescerem chamo-lhe
Henriquetta e dou-lhe outro biscoito…

Muitos dos textos fazem lembrar sketches dos Monthy Python. O humor desconcertante é recorrente. No entanto, não se pense que não podemos encontrar momentos de “verdadeira” poesia no livro. Leia-se Mensagem, A Noite Invadida, Método, onde, de forma clara, o autor coloca de lado o “objectivo” de contar uma história, procurando antes desconcertar o leitor com ideias em vez de imagens.

Apesar de precipitado, pois o ano editorial ainda nem a meio vai, se hoje tivesse que escolher o melhor livro de 2008 ele seria O Espelho Atormentado.


Russell Edson, O Espelho Atormentado, Entroncamento: OVNI, 1ª edição, 2008, 178 pp. (tradução de Guilherme Mendonça do original: The Tormented Mirror, University of Pittsburgh Press, 2001)

1 comentário:

Lord of Erewhon disse...

A questão é pertinente, mas por aligeiramento, ou seja, torna-se pertinente para nós «pós-modernos» (detesto o termo; é apenas um sinal de trânsito): a distinção poesia/prosa tem a ver com processos de escrita e não com a forma na página. Há até (má) poesia que não passa de prosa em rima (F.P.) e a prosa de René Char é poesia.

Se sairmos da cultura light, torna-se fácil entender que toda a prosa é uma instância degradada do poema (H.H.), um abandono do mítico, do simbólico, do esotérico e um exercício hemorrágico na diacronia.

Penso que o mais pertinente é concluir que a tara de micro-ficção contemporânea não é do mesmo teor da de Edson (ou dos aforismos sapienciais de Nietzsche, por ex.), é simples falta de fôlego para ser prosador - e nenhuma experiência crucial para ser poeta!

Cumprimentos.