Um poema de Teixeira de Pascoaes


O Crime

Quem não é filho de Caim?
Abel não deixou filhos.
Mas em Caim, havia Abel.
E somos todos
A vítima e o carrasco
No mesmo ser...
A criatura e o criador
Na mesma fera,
O pecado e o remorso
No mesmo Deus.


em Últimos Versos, retirado de Antologia Poética, selecção de Ilídio Sardoeira, Lisboa: Cadernos F.A.O.J., série C, nº 2, Secretaria de Estado da Juventude e Desportos - Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis, s/data, p. 58. 

1 comentário:

Gato Aurélio disse...

CANÇÃO DUMA SOMBRA

Ah, se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha janela, onde me vou
Debruçar, para ouvir a voz das cousas,
Eu não era o que sou.

Se não fosse esta fonte, que chorava,
E como nós cantava e que secou...
E este sol, que eu comungo, de joelhos,
Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse este luar, que chama
Os espectros à vida, e se infiltrou,
Como fluido mágico, em meu ser,
Eu não era o que sou.

E se a estrela da tarde não brilhasse;
E se não fosse o vento, que embalou
Meu coração e as nuvens, nos seus braços,
Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse a noite misteriosa
Que meus olhos de sombras povoou,
E de vozes sombrias meus ouvidos,
Eu não era o que sou.

Sem esta terra funda e fundo rio,
Que ergue as asas e sobe, em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos,
Eu não era o que sou.

Retirado de Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa de Eugénio de Andrade, Campo das Letras Editores, 7ª edição, 2002, p. 320.