I. Matéria de Poesia
1.
Todas as coisas cujos
valores podem ser
disputados no cuspe à
distância
servem para poesia
O homem que possui um
pente
uma árvore
serve para poesia
Terreno de 10 x 20,
sujo de mato ― os que
nele gorjeiam: detritos
semoventes, latas
servem para poesia
Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros
abstêmios
O bule de Braque sem
boca
são bons para poesia
As coisas que não
levam a nada
têm grande importância
Cada coisa ordinária é
um elemento de estima
Cada coisa sem
préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral
O que se encontra em
ninho joão-ferreira:
caco de vidro,
garampos,
retratos de formatura,
servem demais para
poesia
As coisas que
pretendem, como
por exemplo: pedras
que cheiram
água, homens
que atravessam
períodos de árvore,
se prestam para poesia
Tudo aquilo que nos
leva a coisa nenhuma
e que você não pode
vender no mercado
com, por exemplo, o
coração verde
dos pássaros,
serve para poesia
As coisas que os
líquenes comem
―sapatos, adjetivos ―
têm muita importância
para os pulmões
da poesia
Tudo aquilo que a
nossa
civilização rejeita,
pisa e mija em cima,
serve para poesia
Os loucos de água e
estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é
colosso
Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
servem demais da conta
Pessoas desimportantes
dão pra poesia
qualquer pessoa ou
escada
Tudo que explique
a lagartixa da esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante
para a poesia
O que é bom para o
lixo é bom para a poesia
Importante
sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório
eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe
entupido de silêncio
sabe a destroços
As coisas jogadas fora
têm grande importância
― como um homem jogado
fora
Aliás é também objeto
de poesia
saber qual o período
médio
que um homem jogado
fora
pode permanecer na
terra sem nascerem
em sua boca as raízes
da escória
As coisas sem
importância são bens de poesia
Pois é assim que um
chevrolé gosmento chega
ao poema, e as
andorinhas de junho.
em Poesia Completa,
Lisboa: Relógio D’Água, 2016, pp. 137-139.
1 comentário:
VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.
em O Guardador de Águas, Rio de Janeiro: Record, 2003
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