Um poema de Bernardo Pinto de Almeida


Canone


A arrogância dos poetas nesses dias
passava pelo modo como nos cafés
se dispunham nas mesas: líricos
à esquerda próximos do balcão

épicos à direita alguns com chapéu
dramáticos em pé
na barra
modernos sentados mais ao fundo

despejando sobre brancos papéis de guardanapo
versos livres brancos de poemas em prosa
ou olhando avidamente para Rosa
a empregada mulata de vinte e tantos anos.

Tudo tão admiravelmente posto em ordem
segundo preceitos decerto muito antigos
dava àquela geração de vates surpreendidos
a aparência vaga de um conjunto de amigos.

Mas eis que Baudelaire
Mallarmé Pound Eliot
Wallace Stevens
chegavam a ser termos pronunciados

todos se disputavam
a recitar um verso de O'Hara
um terceto de cummings
uma melopeia à Charles Olson

um simples dito de Tzara.
Eu sentava-me nesse café
numa mesa próxima da porta
e pedia uma bica

folheava o jornal
entre dois goles de meia notícia
evitando sempre olhar para eles
mais que um instante breve

o suficiente para que quase alarmado
me inteirasse do estado
da poesia.
Mas se acaso pela rua distraído

um gato
corria atrás de um outro
ou um cão passava
tão-só um par de pernas na calçada

já de jornal na mão
passada apressada
saltava para fora do cân-
one two three four


em Hotel Spleen, Lisboa: Quetzal Editores, 2003, pp. 19-20.

Sem comentários: